Lucélia Ribeiro
O PAPEL DO LIVRO DIDÁTICO NO ENSINO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA
Entender a natureza do livro didático requer entendê-lo sob três ângulos distintos: através de suas especificidades próprias, como um produto de uma indústria cultural que veicula ideologias, e como um produto de consumo no mercado editorial de uma sociedade capitalista. Oliveira et al. (1984) distinguem três aspectos a serem analisados em um livro didático: o pedagógico, o econômico e o político, onde se encontram também o social e o cultural.
Características do livro didático
Kramsch (1988) identifica quatro características dos livros didáticos de língua estrangeira: (1) são orientados por princípios: princípios básicos de conhecimento, segundo o modelo de teoria de linguagem adotado; (2) são metódicos: o conhecimento é dividido em itens e classificado, e a aprendizagem é seqüencial e cumulativa; (3) são autoritários: o que o livro diz é sempre verdade; (4) são literais: devem ser seguidos literalmente e possuem formas e significados literais.
Muitas são as vantagens do uso de livros didáticos, pois estes promovem uma visão organizada da disciplina em questão, resumindo o “consenso disciplinar” existente na área (Johns, 1997), além de, logicamente, facilitar o trabalho do professor, auxiliando o ensino. Também aponta o fato de que livros didáticos reforçam o reconhecimento de uma área do conhecimento como ciência, pois ajudam a disseminar conhecimentos dentro de uma disciplina (Hyland, 2000).
Produção e mercado
Um fato importante no que diz respeito aos livros didáticos de ensino de línguas estrangeiras é a sua origem. Livros produzidos internacionalmente em países onde o inglês é a língua materna, e visando o mercado global, não conseguem incorporar a realidade sociocultural do aprendiz, pois não possuem um público-alvo específico. No entanto, tais livros são os mais aceitos no mercado, por serem escritos por autores falantes nativos do idioma, que, supostamente, possuem maior autoridade e legitimidade no ensino do idioma que é seu idioma nativo do que um falante não-nativo. Interessa, portanto, às editoras investir nesse tipo de material voltado para o mercado global: sua larga aceitação garante as vendas e reduz os custos da editora, que pode produzir um mesmo título para atender a diversos mercados em diferentes países. Como conseqüência, os livros para o ensino de língua estrangeira são, em sua maioria, publicados no exterior. Decorre daí um grande investimento em qualidade estética, uma renovação constante em que a parte visual do material incorpora avanços tecnológicos.
Indústria cultural e ideologia
Segundo Freitag et al. (1997), três aspectos devem ser considerados na análise dos livros didáticos: o embasamento psicopedagógico, a seleção dos textos que compõem os livros de língua (portuguesa e estrangeira) e a dimensão ideológica das mensagens veiculadas. Enquanto o primeiro está preocupado com a teoria de aprendizagem que subjaz ao trabalho, os demais estão intimamente ligados a uma indústria cultural, na qual os conteúdos veiculados pelos livros se baseiam. O livro didático assume, portanto, um caráter ideológico, pois é produto da indústria cultural.
Mercado editorial e mercado consumidor
É possível distinguir três consumidores básicos para o livro didático: a instituição, o professor e o aluno (Freitag et al., 1997). O grande consumidor, em termos quantitativos, é o aluno. Porém, trata-se de um consumo direcionado, na medida em que não é o aluno que escolhe quais livros didáticos consumir; o consumo do aluno é induzido pelo professor ou, indiretamente, pela instituição. Cria-se, assim, um forte vínculo entre a indústria editorial e o ensino: “a economia do livro didático é (...) o grande negócio de editoras e livrarias” (Freitag et al., 1997, p. 64).
Esse lado econômico e financeiro é fundamental para se entender o papel do livro didático na sociedade pós-moderna. O livro didático não é apenas um instrumento pedagógico em sala de aula, mas também fonte de lucro e renda para editores (Freitag et al., 1997). Mecanismos especiais de venda e divulgação são articulados: o autor deve se adequar às necessidades do editor, que por sua vez se adequa ao mercado consumidor. Esse mercado consumidor pode ser regulado por inovações tecnológicas, inovações metodológicas, recomendação do governo, influência de outras publicações, modismos etc. A preocupação da maioria dos autores com o livro didático não é com a função pedagógica e formadora do livro; “salvo as sempre louváveis exceções, os autores escrevem os livros didáticos para fazer negócio, um bom negócio” (Freitag et al., 1997, p. 137). Há, portanto, o perigo de uma inversão de valores: a função primordial do livro didático pode passar a ser comercial, e não mais pedagógica.
Questões culturais
Uma vez que não se pode ensinar língua sem ensinar cultura, e sendo o livro didático uma importante ferramenta de ensino, o livro didático de ensino de língua estrangeira deve, além de ensinar a língua estrangeira, tratar de questões culturais relativas à língua em questão. Segundo Kramsch (1988, p. "o livro didático pode ser visto como um andaime ideal cuidadosamente construído para a organização e interpretação de uma nova experiência lingüística e cultural". Kramsch (1988) ressalta que o livro didático de língua estrangeira é o produto de cinco culturas: a cultura da língua ensinada; a cultura do aprendiz; a cultura do país onde o livro foi publicado; a cultura da sala de aula; e a intercultura, ou seja, os estágios de aquisição da cultura da língua ensinada. O livro didático parece ter assumido este caráter de objeto complexo demais para ser entendido. No entanto, por mais controvertido que seja, ocupa um papel de destaque no contexto pedagógico e é tido como referência de verdade. O problema é que, no caso do livro didático, se usado indiscriminadamente, esta caixa-preta pode virar a caixa de pandora, e os efeitos daquilo que dela saem podem ser incontroláveis ou nocivos à aprendizagem.
Referências:
Revista Eletrônica do Instituto da Humanidade – Vol. VII; nº XXVI – Jul-Set 2008
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